Escondido na montanha de caixas, só a voz do prefeito era ouvida. Volta e meia levantava a cabeça e falava com a secretária do gabinete que o ajudava a guardar porta-retratos, livros e lembranças diversas recebidas ao longo dos dois mandados. Muitas delas remetiam a momentos de conquista ou de muita tensão em sua trajetória à frente do município.
– Lembra da entrega desta medalha pela Associação dos Moradores da Região Sul, Lúcia?
A mulher só podia avistar a mão do prefeito segurando a fita azul que sustentava a condecoração dourada.
– Ã-hã… – Lúcia revolvia uma caixa enquanto olhava o braço erguido do chefe. – Um pessoal com um carinho enorme por você.
— Gigantesco… Ali me animei a buscar o segundo mandato, tamanha a festa com que fui recebido.
Chegou abatido à solenidade naquele dia. Pouco antes uma visita pra lá de desagradável estivera em seu gabinete.
– Você tem que desistir da reeleição e apoiar minha candidatura… – percebeu o tremor das bolsas abaixo dos olhos do presidente da Câmara como uma mistura de ódio e insegurança. – Com seu apoio, estou eleito…
Como desistir se liderava a corrida sucessória? Se o grupo o queria de volta ao comando da prefeitura? Se só agora havia conseguido aprovar, na lentíssima máquina da burocracia de Brasília, os projetos que faltavam para a cidade dar o salto decisivo? Agnaldo Lourenço sabia de tudo isso, mas ainda assim articulara para publicar em alguns sites pesquisa colocando-se à frente, com números claramente manipulados. Tentava convencer de sua viabilidade um público que tinha simpatia por ele: a parte dos empresários e pastores insatisfeita com o fechamento do comércio e igrejas no auge da pandemia da covid-19, quando ao menos dez pessoas morriam todo dia em Palmas. O presidente da Câmara, em nome desses segmentos, o pressionava diariamente para revogar o decreto, mas resistiu, o que evitou que a tragédia fosse maior.
Sabedor da fragilidade de sua argumentação, o vereador acabou vertendo o verdadeiro motivo da visita indesejada e da proposta sem pé nem cabeça.
– Não quero que estejamos em palanques opostos e algumas coisas venham à tona… – olhava como se escondesse atrás das sobrancelhas, de onde media as reações do outro. – Gosto de você… Não queria de vê-lo constrangido. Há imagens, documentos, testemunhas…
Qual constrangimento? A pergunta fez com que Agnaldo se agitasse na confortável poltrona. É verdade que ganhava um bom dinheiro com o lixo, mas, alegou, não se tratava de mera acumulação pessoal e, sim, pelo “custo político”. Como enfrentar uma campanha só com o que chega do partido? E os líderes? E as demandas dos eleitores? Não eram só os candidatos que haviam se profissionalizado. Isso se tornou um negócio para todo mundo. A sociedade marcha no fundo do poço da imoralidade. Hipocrisia apontar o dedo só para um lado.
– E vocês? Como aprovariam a maioria das matérias sem o que chamavam… Como é mesmo, Agnaldo? Ah, sim, “estímulo”…
O presidente da Câmara agora se encolhia desconfortável no assento que parecia tomado por espinhos. O chefe de gabinete do prefeito até já havia mapeado os bolsões de estacionamento que cada parlamentar escolhera para receber o “estímulo” em espécie às vésperas das votações importantes.
– Você só tem palavra. Nós, como disse, imagens, documentos, testemunhas…
– Ah, é? Pague para ver, senhor presidente…
Levantando-se calmamente, abriu a porta. Agnaldo, já em pé, ajeitou o paletó, encarou-o desafiadoramente e saiu.
Uma eleição dura, baixa, raivosa, mas vitoriosa. “O esquema do lixo”. Foi o nome que os sites e tevês deram ao caso que repercutiu por semanas. Até que o assunto acabou abafado pelo áudio em que Agnaldo pedia “um estímulo” ao secretário-chefe da Casa Civil para votar o projeto de parcelamento do solo. No lamaçal, todo mundo se diminuiu e os eleitores acharam por bem manter quem já estava no poder.
– E esse arco e flecha? – a secretária o tinha na mira quando voltou de suas reminiscências. Assustou-se, levando a mulher a gargalhar.
– Presente daquele cacique xerente… Lembra? Lindo, né? Tem também o cocar… Está em algum canto por aí – apontava fazendo círculos com o indicador longo, fino e muito branco.
– O indígena musculoso que veio com o empreiteiro daquele episódio tenebroso? – o semblante de Lúcia angustiou-se com a memória do incidente.
– Esse mesmo…
Coitado do Antônio Santos. Bom homem. Amava os indígenas de verdade. Sempre os ajudava com dinheiro, veículos, remédios e até transportava os doentes em seu jato. Após vencer a licitação da obra para duplicar uma das mais importantes avenidas de Palmas, o empreiteiro foi ao gabinete agradecer o prefeito e levara o cacique que ofertara a arma primitiva.
Mas a busca exacerbada para assegurar o “custo político” arrancava ao máximo a gordura das empresas que serviam a gestão. O percentual combinado inicialmente acabou esticado ao longo dos meses no jogo de pressão para que os pagamentos pudessem ser liberados. Sujeitava-se para não ficar em maus lençóis com seu pessoal e os fornecedores. Assim, foi cedendo mais e mais aos arrochos dos secretários de Infraestrutura e da Fazenda, até o dia em que invadiu o gabinete do prefeito, depois de muitas tentativas inúteis de audiência.
– Não dou mais conta…
O homem franzino empalidecera ao se dar com o empreiteiro espadaúdo que entrou bruscamente, quase pondo a porta abaixo. Sem reação, só olhava aterrorizado, esperando uma saraivada de socos, ou que o outro sacasse um revólver, ou arrancasse uma faca de algum canto da roupa.
– Todo mês inventam uma história para me tirar dois ou três por cento a mais… Eram cinco, o combinado…. Chegaram a quinze… Agora exigem dezessete! Prefeito, estou quase pagando para tocar esta obra… Me ajude! Não sei o que fazer…
Pronunciou a última palavra com um soco na mesa. O líder político gritou apavorado e, com olhos esbugalhados, encarou o invasor, que, então, avançou abruptamente. Escondeu o rosto sob o antebraço, aos berros, na expectativa do golpe fatal. Envolto pelo desespero, só ouviu sons sufocados e o que pareceu luta corporal. Interminável. Um líquido quente tomou-lhe rapidamente as pernas, encharcando o tecido grosso da calça. Por fim, sentiu dedos suaves tocarem seu ombro, ao que reagiu com outro brado agudo e refugiando-se à parede. Agora uma voz mansa lhe chegava aos ouvidos. Aos poucos tomou coragem. Descobriu a face, ainda apavorado, distinguindo gradualmente o ambiente convulsionado. Os seguranças já haviam imobilizado o empreiteiro e arrastavam-no para fora. Do corredor, o pobre vociferava.
– Vocês vão me quebrar! Por quê? Eu confiei no senhor!
O prefeito ainda tremia, amparado agora por assessores do gabinete.
– Olha pra mim!
Ainda aturdido pelas recordações daquela tarde de pavor, deu-se consigo mesmo no rosto da secretária.
– A máscara! Onde estava? – ria agora das divertidas performances da mulher à sua frente, imitando gestual, sotaque e palavras usuais no discurso do chefe. – Palhaça!
O carnaval seguinte à reeleição, início do segundo mandato. O auge da popularidade, quando foi tema de bloco, com os foliões desfilando mascarados de prefeito. A alegria de momo até o fez esquecer do constrangedor confronto dias antes com Eduardo Silva, amigo de faculdade e seu ex-secretário da Mobilidade Urbana. Coisas da política, que exigia preço às vezes alto, consolava-se. Não era culpado, sentenciava-se. Du sabia disso porque, no longo período de relacionamento próximo, também teve que impor sacrifícios semelhantes a membros do grupo inicial em nome da sobrevivência dos dois. Ou seja, o ex-auxiliar conhecia as regras do jogo. Se acreditava em todos esses argumentos, por que, então, ainda se incomodava tanto com um episódio já superado? Talvez pelas últimas palavras de Du, que reverberavam em sua mente.
Achava que permaneceria no comando da Mobilidade Urbana quando soube nos bastidores que o prefeito havia cedido à pressão de um inimigo pessoal. Geovani Oliveira não tinha dúvida de que, na sua reeleição para deputado, dois anos antes, Du tirou-lhe o apoio do chefe do Executivo de Palmas.
– Não fui eu que trabalhei contra seu apoio a ele… Você que não queria apoiá-lo, lembra? Você que pedia para dizer ao deputado que não poderia atendê-lo por isso ou aquilo. E ele pensava que eu o blindava para que não se falassem…
O fundo da questão não era o fato de Geovani gostar ou não de Du, contornava, mas a falta de maioria na Câmara. O deputado tinha quatro vereadores de fidelidade canina e o prefeito fizera minoria em outubro. Como o parlamentar rompera com o governador justamente por causa de espaço na máquina, era sua chance de dominar com folga o Legislativo, e a um custo até baixo ante a preciosa mercadoria que estava recebendo. Daria duas secretarias completas para Geovani dividir os cargos com seus vereadores.
– Mas a minha pasta, prefeito? Você sabe como articulei nossos negócios nela… É isso! Não estamos falando só da perda do meu salário ou de influência política…
– Pensaremos outras formas de ganho… Vou realocar você em alguma área rentável. Enfim… Vamos pensar juntos uma saída…
Du pegou o porta-retrato sobre o aparador. Os amigos de faculdade que, de forma meteórica, chegariam ao comando de Palmas. Do grêmio estudantil para a Câmara, de lá para a Assembleia e, então, a prefeitura da capital. No entanto, de todo aquele pessoal só sobraram os dois depois de quatro anos de gestão.
– Não, não quero… – o ex-secretário emborcou o porta-retrato sobre o móvel e se pôs num ligeiro, mas profundo silêncio, antes de se despedir. – Sua turma chegou ao fim. Foi toda negociada. Restaram a você os amigos do poder… Boa sorte com eles.
Ajeitou a última caixa no bagageiro. A secretária ainda acenou quando o veículo foi posto em movimento. Apenas ela na despedida. Lembrou de Du e da foto emborcada sobre o aparador. Também acabou negociado, e justamente pelos amigos do poder, pensou, com um leve riso amargo. Do grupo original, agora não havia mais ninguém.
Este é um texto de ficção. A história é fruto da imaginação do seu autor. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações é mera coincidência.