Vou segredar uma coisa a você, mas que fique muito entre nós: sou político particular. Sim, alugo meu tempo integral a um cliente que, por não ser popular, precisa de mim para ter mandato. Há aqueles que preferem viver de biscates, vendendo demandas na praça para os mais diversos segmentos. A maioria é assim. Sempre achei muito mais arriscado e trabalhoso.
Sinto-me mais seguro com meus inestimáveis serviços ao dispor de um único freguês, dos mais ricos da nossa sociedade de cidadãos de bem, cristãos, pais de família, conservadores, cumpridores de seus deveres, etc., etc. Mercado mais fértil para meus negócios, impossível.
O grupo do meu cliente exclusivo estende seus tentáculos para a hotelaria, construção civil, rede de postos de combustíveis e ao transporte coletivo das principais cidades do Estado. Ou seja, não me faltam missões para garantir que as empresas dele continuem faturando alto. Tenho que defender leis que beneficiem nossas operações, driblar as burocracias infernais com a boa relação que mantenho com as mais altas e probas autoridades e me livrar dos espertinhos daqui do parlamento que, volta e meia, propõem mudanças legais inoportunas e até comissão de inquérito, a famigerada CPI, para ameaçar algum setor em que atuamos com o claro intuito de arrancar algum dinheiro das nossas companhias. Nessas intromissões do legislativo nos negócios, meu trabalho é convencer os colegas a recuarem, ao menor custo possível.
Quando surge uma dessas iniciativas parlamentares inconvenientes — e isso ocorre com uma frequência que você está longe de imaginar —, a primeira medida é atuar como psicólogo ou coisa do tipo. Uma boa conversa, um presentinho valioso para o autor, bom emprego a um familiar inútil em nossas empresas. Essas providências podem pôr fim à demanda. É “meu amigo” pra cá, “meu irmão” pra lá, muitos abraços. Viagem no jato ultramoderno do grupo para uns dias no melhor resort de algum lugar paradisíaco — óbvio que tudo por nossa benévola conta —, e o cidadão volta ao batente com energias renovadas, ânimo e disposição para esquecer a provocação. Ainda traz de suvenir a promessa de um bom aporte de caixa dois nas eleições seguintes. Todo mundo fica feliz.
Se o ladino usou e abusou da nossa hospitalidade, mas se mantém firme no propósito de prejudicar as operações, entro em cena novamente. Desta vez, com minha bancada particular. Sabe como é, aqueles colegas para os quais nossas empresas já fizeram algum favor, garantiram bons recursos em campanha, abriram as portas para empregar parentes folgados e desqualificados para o mercado. Tem ainda os que, diante dos serviços permanentes prestados, se beneficiam de um gordo mensalinho.
A tática aí é isolar o velhaco e deixar mais que evidente que ele não terá apoio legislativo para seu oportunismo. Na maioria absoluta das vezes, o embusteiro se vê emparedado e se põe no devido lugar. Meu cliente, então, me presenteia com um extra farto e um nababesco jantar com toda a diretoria para celebrarmos outra vitória.
Contudo, o extorsionário pode mostrar mais força política do que supúnhamos e furar nossa rede de proteção interna. Nessas horas, faço a leitura do cenário e aviso o chefe que teremos que passar para o nível três do manual de procedimentos.
Entram em cena meus amigos da imprensa. Uma fase muito delicada, porque é preciso saber o que cada um quer. Tem o jornalista que busca notícia socialmente relevante. A esses, é necessário provar a importância da informação para o bem da nossa magnânima sociedade, à qual o abnegado acredita piamente realizar um incomensurável serviço que lhe será recompensado no céu ou sei lá onde. Então, entrego os documentos e arrolo fontes confiáveis — quer tudo nos mínimos detalhes. É o mais difícil de conquistar, mas o que dá melhores resultados.
Outro tipo quer afago e reconhecimento. A preocupação não é cumprir um dever social, mas ser visto como grande jornalista, receber cumprimentos, muitos elogios e ter seu furo de reportagem repercutido por todos os veículos – e, de preferência, que seu nome seja fartamente citado pelos concorrentes. Não é muito exigente com as provas. Qualquer sinal de fumaça, para ele, é fogo. É fácil abrir espaço com esse, mas cobra aclamação pública por sua façanha. Também dá bom resultado, porque, como sua missão de vida é ser maior que a notícia, sempre se coloca nos fatos de forma que ambos atraiam ao máximo a atenção da audiência. Por isso, é muito lido, ouvido ou assistido.
O último tipo, mas com resultados menos consistentes, por total falta de credibilidade, é o que faz o serviço com base na milenar relação pecuniária. Operação mais simples, nem prova precisa. Coloco o dinheiro na conta do sujeito, digo o que quero e logo estará estampado em suas páginas. A vantagem é que posso emprestar cores mais quentes aos deslustres com os quais quero enfeitar meu alvo.
Geralmente, tento conseguir espaço nas três frentes, começando pelo primeiro, com muito maior credibilidade; então, busco o segundo; e, por último mas não dispensável, o terceiro.
Como político sempre deixa pontas soltas, ou algo próximo a isso, é aí que atuo. Minha equipe puxa o cabrito do insurgente que resistiu às duas fases anteriores, maquia fatos, quando necessário, para torná-los desagradáveis mas convincentes; e, sobraçando o dossiê, passo a visitar os amigos jornalistas. Nos do primeiro tipo, por ser muito difícil persuadir, vez ou outra emplaco uma historinha. De toda forma, a coisa vai a público pelas demais espécimes dessa fauna, e o chantagista fica numa saia justíssima com a exposição de todos os seus podres ou simulacros de impudicícia.
Dos que resistem à primeira e à segunda fases, noventa e nove por cento se dobram à campanha difamatória. Já fiz de tudo com essa tática: consegui a desistência do intento por absoluta falta de voto (ninguém quer aparecer na foto com colega de imagem maculada), cassei parlamentar (lógico que uso o embuste para ir à tribuna, digo que a Excelência em questão é indigna de fazer qualquer propositura na nossa ilibada Casa de Leis e minha rede interna de cooptados expurga o infame por sua cabal quebra de decoro), provoquei renúncia e, lógico, pelo meu bom coração, também convenci os amigos da imprensa a esquecerem a história quando o rebelde se penitenciou de seus pecados e retirou a proposta prejudicial aos nossos negócios.
Você deve estar pensando no um por cento que sobrevive até mesmo à campanha degradante dessa imprensa impiedosa. Olha, o mundo não é um lugar justo, bom e seguro. Acidentes acontecem, a pessoa pode ser vítima de assalto e já vi uns, em meio ao tsunami de humilhações, atentando contra a própria vida. Uma lástima! Mas meu cliente, sempre sensível à dor alheia, nunca deixou faltar sua coroa de flores nos velórios desses infelizes.
SERVIÇO
Conto do livro “A noiva e outros contos políticos” (Ed. Veloso, 2023), de Cleber Toledo
Disponível em formato digital em:
Amazon (Kindle): https://amazon.com.br/dp/B0CLL3NRWD
Kobo: https://kobo.com/br/pt/ebook/a-noiva-e-outros-contos-politicos…
E no formato físico nas livrarias GEP Palmas, Gurupi e Araguaína e Leitura, no Capim Dourado Shopping, em Palmas.
Este é um texto de ficção. A história é fruto da imaginação do seu autor. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações é mera coincidência.