Chegamos aos 35 anos do Tocantins já com muita história para contar, muitos acertos – como a própria criação do Estado –, mas muitos erros também pela irresponsabilidade geral de seus líderes nos jogos de disputa de poder que atolaram a mais nova unidade da Federação numa absurda e abismal crise fiscal. Assim, divido nossa história política recente em dois momentos fundamentais: a vitoriosa luta do antigo norte goiano por sua independência, conquistada com a Constituição Cidadã de 5 de outubro de 1988; e o fim da hegemonia da poderosa União do Tocantins, que implantou o Estado, com um ligeiro interregno para a gestão do MDB, sob o comando de Moisés Avelino, entre 1991 e 1994.
Não vivi o período anterior à criação do Tocantins. O que sei é apenas pela leitura das obras de importantes autores e pela conversa com os pioneiros, que nos ensinam que foi uma luta histórica, centenária, capitaneada por muitos líderes de diferentes épocas. Entre eles o governador Siqueira Campos, que nos deixou em julho e entra para a história – sem dúvida, por merecimento – como símbolo maior desse enfrentamento, uma vez que foi dele o projeto de criação, foi ele quem governou primeiro, escolheu a capital, implantou Palmas, abriu estradas, inaugurou escolas, enfim, atuou decisivamente para tirar o antigo norte goiano do total abandono administrativo.
Os números mostram que o desmembramento de Goiás só fez bem ao povo do Tocantins. A renda melhorou – ainda que a desigualdade que marca o Norte do País continue sendo uma chaga a ser vencida. Tínhamos um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,611 em 1991, três anos apenas após a criação do Estado. Esse indicador em 2000 chegou a 0,71. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), também em 1991, a pobreza do Tocantins atingia 60,98% da população. Em 2000, havia retraído para 50,79%. Esses dados constam de um artigo do site da Universidade Federal de Goiás e são atribuídos ao geógrafo Jean Carlos Rodrigues, da Universidade Federal do Tocantins.
O número de tocantinenses extremamente pobres em 1992 – referente a pessoas em domicílios com renda domiciliar per capita inferior à linha de extrema pobreza (ou indigência, ou miséria) – era de 389.252. Em 2009, com uma população muito superior, esse total caiu para 106.406, uma redução de 72,66%. Esse dado é do artigo científico “Tocantins: o crescimento e o desenvolvimento econômico regional com a criação do novo estado”, dos professores Cejana Marques Borges, Moacir José Santos e Edson Trajano Vieira.
Os autores concluem em seu artigo que os dados que analisaram “apresentam uma perspectiva favorável à hipótese levantada de que a criação do Estado do Tocantins promoveu tanto o crescimento econômico quanto o desenvolvimento econômico regional”. “Esse resultado ficou evidente nos indicadores de renda, emprego e índice de desenvolvimento humano”, afirmam. Contudo, ressalvam que os indicadores do novo estado continuam “inferiores à média do Estado de Goiás”. “As diferenças entre o Estado de Tocantins e o Estado de Goiás denotam que, apesar do incremento da renda e do avanço demonstrado, mediante a análise dos indicadores, há a necessidade de se avançar tanto no crescimento econômico quanto na distribuição de renda e oportunidades de trabalho qualificado”, pontuam.
Ou seja, a conquista foi enorme com a criação do Estado, mas temos muito que avançar. E precisamos. Em grande parte, a bem da verdade, os passos do povo tocantinense não são foram muito maiores pela gana de seus líderes por poder e por sua irresponsabilidade com as contas públicas.
No primeiro momento da recente história política do Tocantins, Siqueira Campos foi fundamental, como já registrado. Impôs seu projeto de Estado, de um lado, com habilidade e, de outro, com a força que exercia de forma muito calculada e mantendo perto de si o conjunto de líderes que comandavam as máquinas públicas municipais, Assembleia e a bancada federal. Fazia isso por meio da histórica União do Tocantins, que de 1988 e 2005 chegou a contar com 25 partidos – PDC, PFL, PTB, PDT, PSDB, PL, PDS, PSC, PST, PMN, PPR, PPB, PSDB, PV, PSB, PRP, PSDC, PGT, PRTB, PTdoB, PSD, PSL, PAN, Prona e PP.
Se o siqueirismo tinha pouco espaço para a oxigenação política, uma vez que os líderes brotavam a partir do que seu líder maior, Siqueira Campos, entendia como estratégico para seu projeto de Estado, também é verdade que esse mesmo controle rigoroso ocorria sobre as contas públicas.
Meu primeiro evento político no Tocantins foi em 1º de janeiro de 2003. Ainda como turista, assisti a passagem de comando do Estado de Siqueira Campos para seu sucessor, Marcelo Miranda, ainda filiado ao PFL, mas que mudaria logo em seguida para o PSDB, conforme conveniência enxergada pela cúpula utista. Marcelo herdava um governo que comprometia apenas 35,7% de sua receita corrente líquida com folha de pessoal, o que garantia ao Estado uma liquidez considerável.
Aí se encerrou a era utista. Marcelo deixa o PSDB em meados de 2005 para voltar, com o pai, Brito Miranda, ao MDB, do qual a família era historicamente originária, consolidando, assim, o rompimento da UT. Com o fim da hegemonia do grupo de Siqueira, o Estado efetivamente se democratiza, há maior oxigenação da política e muitos líderes começam a conquistar espaços antes só permitidos se houvesse a benção do comandante. Outros nomes novos surgem na vida pública por conta própria, ou seja, galgaram os próprios espaços por movimentos autônomos, sem necessariamente o direcionamento do status quo.
Porém, inicia-se um disputa fratricida pelo poder que resulta na profunda crise fiscal que o Estado só começaria a superar em 2018, isto é, 13 anos após o rompimento utista. Essa disputa irracional começa a partir de 2005, para atrair os líderes para o Palácio Araguaia, sob o comando de Marcelo Miranda, decidido a buscar a reeleição em 2006. O Estado, então, passa a ter nomeações desenfreadas.
Nesse período, surgem as malfadadas emendas parlamentares na Assembleia – que só viriam a se tornar impositivas em 2014 –, como meio de combater o mesmo expediente da bancada federal, que, dos 11 membros, só tinha um representante aliado a Marcelo, a então deputada federal Kátia Abreu. Como os prefeitos não deixavam o siqueirismo porque contavam com as emendas, agora os deputados estaduais poderiam atraí-los também com recursos extras do orçamento estadual.
Em outra frente, o governo concedia Planos de Cargos, Carreiras e Salários (PCCSs) a torto e à direito para segurar os servidores ao seu lado. Ao gosto da “freguesia”, sem qualquer preocupação mais refinada sobre os possíveis impactos. O principal motivo das contas sob controle nas gestões Siqueira era sua postura em relação ao funcionalismo: vigilância total sobre nomeações e sobre as concessões de direitos trabalhistas. Tudo isso foi mandado às favas entre 2005 e 2006. E deu resultado: Marcelo ficou com cerca de 90 prefeitos e seguramente mais de 90% dos servidores em sua vitoriosa campanha de reeleição.
Com tudo isso, nesses dois anos, o Estado passou dos 35,7% deixados por Siqueira para incríveis 44,7% de gastos de folha na relação com a receita corrente líquida.
Então vieram os processos de interrupções de mandatos, como resultado dos abusos do mandatário de plantão, mas também das brigas políticas nas quais a última coisa que importa são interesses do Estado. O objetivo sempre foi (e continua sendo um só) derrubar aquele que derrotou a oposição e tentar, dessa forma, tomar o poder. Nessa esteira inconsequente, Marcelo foi cassado em 2009, e o presidente da Assembleia, Carlos Gaguim, virou governador. Os 44,7% do emedebista se transformaram em 47,7% sob Gaguim.
Siqueira volta em 2011, já com uma gestão sob a roupagem dos tempos loucos de administração desgovernada e que em nada lembrava aquele comandante austero do passado. Dessa forma, ao renunciar em 2014, entrega o governo para outro presidente da Assembleia, Sandoval Cardoso, com 48,7% de gastos com pessoal. O novo governador tampão perde para o veterano Marcelo Miranda, que recebe uma batata quente de 50,9% de receita corrente líquida com folha.
Cassado, em março de 2018, Marcelo passa o bastão para outro presidente da Assembleia, Mauro Carlesse, já com 58% de gastos com funcionalismo. Felizmente para o Estado, o novo governador inverte a tendência dessa curva de despesa, reduz custos (chegou a congelar data-base e progressões e a controlar o uso de veículos, entre outras medidas) e o Tocantins desinchou. Mas de um script Carlesse não fugiu: também não concluiu o mandato, afastado do cargo pelo STJ em outubro de 2021 e depois renunciou ao cargo, no final de março de 2022, para fugir do impeachment aberto pela Assembleia.
Mas Wanderlei Barbosa, dessa vez o vice-governador, assumiu o Palácio Araguaia sob outra realidade, com apenas 42% de comprometimento de receita corrente líquida com folha. O novo gestor deu continuidade aos ajustes e esse índice caiu ainda mais, para 39,14% em 2022, muito abaixo dos 44,1% do limite de alerta da Lei de Responsabilidade Fiscal. Com isso, o Estado, após mais de uma década, voltou a ter a letra B da Secretaria do Tesouro Nacional, e agora o governador mira a letra A para 2024.
Ou seja, o Tocantins voltou depois 18 anos – considerando como marco 2005, o ano de rompimento da UT – a apresentar novamente um ciclo virtuoso em suas contas públicas, o que significa, sobretudo, maior liquidez, maior capacidade de investimento e de adquirir financiamentos para se desenvolver.
O Tocantins teve, portanto, em sua fundação, a partir de 1988, uma fase de responsabilidade fiscal e austeridade; depois, iniciando em 2005, uma etapa de total descuido e deterioração das contas; e agora inaugurou, desde 2018, um novo período em que se misturam características dos dois primeiros momentos históricos. Neste novo ciclo, se a responsabilidade fiscal voltou a ter guarida na gestão pública estadual, as disputas fratricidas do poder pelo poder, a despeito dos interesses do Estado, continuam, gerando preocupação e até instabilidade jurídica e política.
Ainda são os tremores iniciados com o rompimento da UT e o fim de sua hegemonia.
CT, Palmas, 2 de outubro de 2023.