Só Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, nosso Barão de Itararé, entende o contorcionismo linguístico da Prefeitura de Palmas para tentar sair da saia justíssima em que se meteu. “O português é uma língua difícil. Tanto que calça é uma coisa que se bota, e bota é uma coisa que se calça”, queixava-se o talentoso jornalista, escritor e pioneiro no humorismo político brasileiro, nosso falso barão, porque, na verdade, nunca teve sangue azul.
Com o discurso de rígida austeridade para segurar os solavancos da Covid-19 na Capital, a prefeita Cinthia Ribeiro (PSDB) empunhou a bandeira da quarentena hermética para que o novo coronavírus ficasse sem qualquer brecha para fincar raízes na cidade. Mas aqui e ali foi cedendo. Lotéricas, feiras, depois foram as lojas de material de construção e, por fim, o transporte coletivo.
A repercussão da vitória jurídica, porém, não deve ter sido muito boa, porque na tarde desta quarta-feira, 27, a Prefeitura de Palmas soltou na praça uma tese meio que estrambólica para explicar o que prevaleceu na sua quixotesca batalha jurídica para garantir que os ônibus circulassem com lotação completa
CLEBER TOLEDO, jornalista e editor da Coluna do CT
Sobre esse último, inicialmente, o decreto dizia que estava suspensa a “prestação de serviço de transporte coletivo urbano e rural, de caráter público ou privado, que exceda à metade da capacidade de usuários sentados”. Trocando em miúdos: de acordo com o Decreto 1.856, de 14 de março, artigo 12, inciso IX, como o ônibus tem 40 lugares para passageiros sentados, poderia levar só até 20.
No dia 30 de abril, a prefeitura alterou o texto do inciso IX desse artigo 12, que ficou com a seguinte redação: [está suspensa a] “prestação de serviço de transporte coletivo urbano e rural, de caráter público ou privado, que exceda 100% (cem por cento) da capacidade de usuários sentados”.
Destrinchando: o que era metade, virou 100%. Assim, os ônibus podem circular com lotação completa (40 lugares, 40 pessoas), mas, se todas essas vagas estiverem ocupadas, ninguém poderá ir em pé.
O PSB — sem perder de vista que a Covid-19 jogou água na fervura das articulações, mas que o ano não deixou ser eleitoral — foi à Justiça e conseguiu derrubar a autossabotagem da quarentena que a Prefeitura de Palmas estava fazendo por uma razão óbvia: 40 cabeças próximas umas das outras são um trampolim mais eficiente para o novo coronavírus do que loja com fluxo controlado de clientes. O partido ganhou, o texto original do Decreto 1.856, de 14 de março prevaleceu e os ônibus tiveram que voltar a circular com 50% de sua lotação – leia-se: no máximo 20 pessoas.
Sem alarde, o governo de Palmas mostrou que estava disposto a ir até o fim com sua autossabotagem e recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Perdeu novamente. Inconformado, o município não se deu por vencido e apelou ao Supremo Tribunal Federal (STF), onde conseguiu convencer o ministro Luiz Fux, nessa terça-feira, 26, de que esse trampolim de Covid-19 não é tão eficiente assim.
A repercussão da vitória jurídica, porém, não deve ter sido muito boa, porque na tarde desta quarta-feira, 27, a Prefeitura de Palmas soltou na praça uma tese meio que estrambólica para explicar o que prevaleceu na sua quixotesca batalha jurídica para garantir que os ônibus circulassem com lotação completa.
Um release distribuído à imprensa fazia o seguinte contorcionismo linguístico: o Decreto Municipal nº 1.886, de 30 de abril, permite a presença de 100% de passageiros sentados nos veículos do transporte coletivo da Capital, o que representa 50% da capacidade total, que é de 80 passageiros, 40 sentados e 40 em pé.
É isso mesmo. Você não leu errado. A tese exótica garante que os 100% de lotação não são as 40 cadeiras ocupadas, mas todos os sentados cheirando o sovaco de outros 40 em pé. Assim, insiste a prefeitura, continua valendo os 50% iniciais e a prefeita Cinthia Ribeiro se mantém irredutível em sua firme convicção de que só com uma quarentena rigorosa derrotaremos a Covid-19.
O problema é que o fato não confirma a versão. Repetindo o que diz o inciso IX do artigo 12 do Decreto 1.856, de 14 de março: está suspensa por tempo indeterminado a “prestação de serviço de transporte coletivo urbano e rural, de caráter público ou privado, que exceda à metade da capacidade de usuários sentados”.
Agora o texto que resultou da alteração do dia 30 de abril: [está suspensa a] “prestação de serviço de transporte coletivo urbano e rural, de caráter público ou privado, que exceda 100% (cem por cento) da capacidade de usuários sentados”.
Há um contorcionismo linguístico também nessa redação de 30 de abril porque ao invés de permitir que se ocupe 100% dos assentos, diz que está proibido que se vá além desse percentual.
Numa época em que o analfabetismo funcional é a grande praga da Nação, vai toda essa acrobacia cole?
Mas é preciso cuidado. De tanto contorcionismo, o médico do momento no Paço pode não ser o infectologista, mesmo em meio à pandemia, mas um ortopedista.
CT, Palmas, 27 de maio de 2020.