Em meio ao esforço concentrado dos deputados estaduais, uma série de fatos diferentes brota para confirmar que as emendas parlamentares são uma anomalia que precisa ser excretada da gestão pública. Na Assembleia do Tocantins, os deputados agem em três frentes para amarrar as emendas e eliminar qualquer possibilidade de que não sejam pagas.
A mais ousada é colocar a obrigatoriedade do pagamento (pasmem!) na Constituição Estadual, alterando o artigo 81. Além dar o status de importância constitucional às cotas orçamentárias dos deputados, a alteração na Carta Magna faz um liberou-geral para prefeituras inscritas no Serviço Auxiliar de Informações para Transferências Voluntárias, conhecido como Cauc. Ou seja, mesmo que o município tenha restrições de crédito — uma vez que o Cauc é uma espécie de Serasa da gestão pública —, ainda assim poderia ter acesso a dinheiro do contribuinte tocantinense. A alteração da lei vai um pouco mais adiante: dispensa a necessidade de celebração de convênios e prevê repasse direto às prefeituras.
Também querem alterar a lei de autoria do deputado Amélio Cayres (SD), de 2017, que cria um fundo para receber essas emendas, mas que, sem dizer como isso funcionaria, estava engavetada. Agora, os parlamentares querem colocar nessa lei que o governo deverá pagar em dez parcelas o 1,2% de Receita Corrente Líquida destinada às cotas individuais.
[bs-quote quote=”A constatação das mais perversas, portanto, é que, no momento em que se discute financiamento público de campanha, restrição do custo delas para tentar tornar a competitividade das eleições mais justa e igualitária, vemos dinheiro do contribuinte usado por um grupo de mandatário para compra de cabos eleitorais de luxo, os prefeitos” style=”default” align=”right” author_name=”CLEBER TOLEDO” author_job=”É jornalista e editor da Coluna do CT” author_avatar=”https://clebertoledo.com.br/wp-content/uploads/2019/09/CT-trabalhado-180.jpeg”][/bs-quote]
Para terminar de amarrar e dar um nó bem firme, pretendem também fazer a previsão desse pagamento em dez vezes na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Com isso, o governador Mauro Carlesse (DEM) não terá para onde correr.
Há cerca de um mês, ao votar as contas do ex-governador Marcelo Miranda (MDB), houve uma tentativa de condicionar a aprovação ao pagamento dessas emendas. Se a Assembleia fizer todas essas alterações legais que pretende, não tenham dúvida de que Carlesse e seus sucessores serão julgados a partir do pagamento dessas cotas de recursos do Orçamento destinadas aos parlamentares. Assim, elas passarão a ter prioridade máxima, acima de qualquer outra necessidade do Estado, o que é um total absurdo e uma profunda indecência.
As movimentações no plano nacional não são diferentes. O Congresso também quer aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para permitir que deputados e senadores negociem livremente com prefeitos e governadores o destino de emendas parlamentares individuais – sem vinculação com programas do governo federal, conforme O Estado de S.Paulo. De acordo como jornal, a proposta retira de órgãos federais a fiscalização desses recursos. Um dos atingidos seria o Tribunal de Contas da União (TCU), que tem a prerrogativa de fiscalização do recurso federal, tarefa que passará a ser feita, avisa o Estadão, por órgãos de monitoramento locais.
Os procuradores da República fazem um alerta sobre o qual tenho insistido há muito tempo: a medida enfraquece não apenas o combate à corrupção, mas também a “boa governança de recursos públicos”. Adivinhem de quem é a PEC: dela mesma, da presidente nacional do PT, deputada federal Gleisi Hoffmann (PR), apresentada quando a petista era senadora em 2015 e resgatada na surdina pelo atual presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). A proposta já foi aprovada na Câmara.
No entanto, o TCU avisa que essas emendas não contribuem para melhorar a vida das pessoas. “Na hora em que se decide para onde parte das emendas parlamentares deve ser enviada, necessidades reais da população são ignoradas”, concluiu auditoria do tribunal em emendas feitas entre 2014 e 2017.
Apesar de serem impositivas, essas cotas nem sempre são liberadas pelos governos para todos. Não ao mesmo tempo e no mesmo ritmo. Os aliados continuam sendo privilegiados, o que significa que essas emendas ainda são utilizadas como moeda de troca. Também o Estadão trouxe nesta terça-feira, 3, que parlamentares do Centrão, como PP, DEM e PL, e aliados próximos ao presidente Jair Bolsonaro são privilegiados com a torneira dos cofres palacianos.
Conforme o jornal, quem abocanhou maior fatia até agora foi o deputado Pastor Marco Feliciano (Podemos-SP), vice-líder do governo na Câmara, um dos aliados mais fiéis ao Palácio do Planalto e o homem dos dentes mais caros do mundo (os contribuintes financiaram um tratamento para ele de R$ 157 mil). Dos R$ 15 milhões indicados por Feliciano no Orçamento deste ano, R$ 12 milhões já foram pagos. Outro bolsonarista empedernido, o deputado Eder Mauro (PSD-PA) conseguiu liberar R$ 11,6 milhões.
Há anos que coloco minha posição de forma muito clara: sou absolutamente contra esse câncer da administração pública, que começa a entrar em metástase. Já foi implantada em Palmas e outras câmaras se assanham, em silêncio, para seguir o exemplo trágico para os governos.
Essas emendas atrapalham, e muito, a vida da administração pública e já tem vício de origem: foram criadas pela ditadura militar para cooptar parlamentares. Depois a tornaram impositiva. A ideia era que o governante não poderia privilegiar seus aliados em detrimento da oposição. Como vimos no exemplo de Bolsonaro, não funciona bem assim. No governo Michel Temer, os parlamentares foram comprados com emendas para não aprovar a abertura de processo de cassação contra ele. Assim, o fato de serem impositivas não impede o uso discricionário, conforme os caprichos e necessidades políticas de quem governa.
Mas não é só isso. As emendas abrem a guarda de forma absurda para a corrupção. No Tocantins, a Polícia Civil está em campo e tem deputado apavorado. Mas isso se repete no plano nacional, quando há parlamentares que chegam no prefeito com a emenda numa mão e a empreiteira que fará a obra na outra.
A existência das emendas dificultam a oxigenação política do País, uma das necessidades mais prementes do Brasil e do Estado. Com suas cotas, deputados e senadores tornam prefeitos reféns, a ponto até de obrigá-los a mudar de partido. Como são os maiores cabos eleitorais, eles têm que pedir votos para seus padrinhos por causa dos recursos alocados para a gestão. Assim, fica muito difícil que deputados em mandato não sejam reeleitos. Em 2018 ficou muito evidente: na Assembleia do Tocantins, tirando os suplentes que estavam ocupando a vaga do titular, que não tiveram tempo para operar esse sistema das emendas, os demais, todos os que foram à reeleição conquistaram um novo mandato. Esse modus operandi deixa pouquíssimo espaço para a renovação política.
A constatação das mais perversas, portanto, é que, no momento em que se discute financiamento público de campanha e restrição do custo delas para tentar tornar a competitividade das eleições mais justa e igualitária, vemos dinheiro do contribuinte usado por um grupo de mandatário para compra de cabos eleitorais de luxo, os prefeitos. Fora o fato de que, por dominarem ou terem mais acesso à estrutura partidária, geralmente, esses deputados recebem mais recursos públicos em suas campanhas.
Por fim, as emendas parlamentares desvirtuam o verdadeiro papel do legislador, que, como o próprio nome sugere, é fazer leis, e também fiscalizar o Executivo, duas coisas que, no geral, nossos representantes não fazem muito bem.
Assim, quando vejo que os parlamentares se movimentam de forma intensa nos Estados e em Brasília para facilitar cada vez mais a canalização de recursos para as suas bases, fico muito preocupado. Nessa relação não deveria ter cambista. Tinha que ser direto dos prefeitos com governo, dos governadores com a União e também dos munícipes com a prefeitura.
Os atravessadores só servem para atrapalhar o planejamento dos Executivos e faturar política e financeiramente, ainda com o efeito colateral de, muitas vezes, colocarem a faca no pescoço do Executivo quando não conseguem receber os recursos. Isso vimos na última gestão de Marcelo, com a Assembleia deixando vencer Medidas Provisórias importantíssimas porque os deputados não recebiam as emendas, uma atitude totalmente antirrepublicana e imoral.
Por tudo isso, ainda que eu seja uma voz que clama bem sozinho no deserto, deixo aqui meu grito isolado: pelo fim das emendas parlamentares em todas as instâncias, já!
CT, Palmas, 3 de dezembro de 2019.