Acertada a decisão da prefeita de Palmas, Cinthia Ribeiro (PSDB), ao anunciar nas redes sociais que vai revogar o decreto que criou o tal Comitê Municipal de Igrejas Cristãs, o Comic. Nada contra uma organização religiosa que poderia ser acionada pelo Executivo para tirar dúvidas, dar conselhos e sugestões ao município nessa área. Afinal, o campo espiritual é uma dimensão importante da vida do cidadão, e não pode ser negligenciado pelo Poder Público por conta da laicidade do Estado.
Agora, a laicidade deve ser considerada pelo mesmo Poder Público na hora de formatar um órgão consultivo na esfera religiosa. Por essa ótica que a criação do Comic foi um erro.
Muitos confundem Estado laico com Estado ateu. O ateísmo é característica, por exemplo, do Estado comunista, que vê a religião como “ópio do povo” e, então, incorpora essa doutrina na sua formação por não reconhecer a dimensão espiritual da vida humana, que, para os comunistas em geral, se resume à sua materialidade. No caso brasileiro, não. As diversas religiões são reconhecidas pelo Estado e o direito à crença e ao culto garantido pela Constituição Cidadã de 1988.
No entanto, no Brasil republicano não há uma religião de Estado, como o catolicismo foi do império, instituído, inclusive, pela Constituição de 1824. E já que também não temos um Estado que pratica o ateísmo, o Poder Público não é proibido de ter um órgão consultivo no campo espiritual. Contudo, não é admissível que seja composto unicamente de um segmento religioso.
É o que está ocorrendo com o Comic, que selecionou um grupo com o qual a chefe do Executivo deve mais se identificar, no caso, o cristão — quer dizer, parte dele, porque só católicos e evangélicos, uma vez que o espiritismo também segue os ensinamentos de Jesus Cristo e não participa do comitê formado pelo município.
Palmas é uma das capitais mais religiosas do Brasil, como mostrou o Novo Mapa das Religiões, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), no ano passado. São 62,65% de católicos e 26,08% de evangélicos (17,44% pentecostais e 8,64% das demais correntes). Dessa forma, a prefeitura encontra eco na sociedade para ações voltadas para este público, como já faz, por exemplo, com o Capital da Fé, o carnaval gospel. Mas não pode simplesmente ignorar os demais segmentos porque 88,73% da população é cristã tradicional.
Se a democracia atender só a maioria, haverá muita injustiça e o Poder Público reforçará discriminações que já tanto castigam a sociedade brasileira. Um comitê religioso deve contemplar também espíritas, as crenças de matriz africana e outras, como o budismo. Quando o Paço recorrer ao órgão — aqui é importante ressaltar a impessoalidade: não é a prefeita, mas o município que é auxiliado pelo comitê —, todos precisam ter o mesmo espaço, vez e voz.
As igrejas também devem estar abertas a essa diversidade porque, parte delas, não têm dado bom testemunho público e perdido fieis, como este que vos escreve, hoje um desigrejado, desencantado e totalmente desiludido com essa instituição humana, como outros 8,43% de palmenses, de acordo com a mesma pesquisa da FGV. Esse índice estava em 4,21% em 2003. Se os líderes cristãos não acordarem para a necessidade de reduzir as discriminações, preconceitos e de se tornarem mais inclusivos e pluralistas, essa pequena sangria vai se transformar numa hemorragia incontrolável.
Com um importante papel e respaldo na sociedade, as igrejas precisam ser reconhecidas pelo Poder Público e ambos devem trabalhar juntos para garantir também o apoio espiritual que nossa população busca. Desde que isso ocorra sem agravar um processo de exclusão que já submete tantas pessoas à discriminação.
Além de afrontar a Constituição em vários princípios, como impessoalidade e laicidade do Estado, e ainda tirar a voz de parcela da sociedade que também paga impostos e contribui com o desenvolvimento da Capital, esse tratamento desigual desrespeita o próximo e faz acepção de pessoas, duas práticas condenadas pelos próprios ensinos do Cristo.
Palmas, CT, 11 de junho de 2020.