A Câmara dos Deputados vem tendo uma grande profusão de projetos que, segundo os Deputados, visam a modernização de nosso país. Após a aprovação pela casa do projeto que altera as regras da Previdência, agora parece ser a vez de se retomarem as discussões acerca dos casos de abuso de autoridade relativos ao Processo Penal e a Execução Penal, o PL7.596/2017, que após aprovação legislativa agora aguarda a Sanção ou o Veto presidencial.
O projeto visa a alteração de um conjunto legislativo então vigente que trazia leis hoje defasadas acerca do abuso de autoridade, restrita a um rol muito específico de agentes que podem ser responsabilizados por abusos, essencialmente no âmbito da persecução penal, Lei esta datada de 1965 e assinada pelo então presidente Castello Branco (Lei 4.898/1965).
Diferentemente de códigos de outros países, como o caso do Código Penal alemão (art. 339 do Rechtsbeugung), que prevê a punição de funcionário público ou juiz que direcione “[…] o direito para decidir com parcialidade contra qualquer uma das partes […]”, com pena de até cinco anos. Em toda Europa a legislação direciona-se para o mesmo fim, tendo casos paradigmáticos de punição a magistrados, promotores e outros atores policiais na persecução penal em casos de escutas ilegais, direcionamento de processos, prevaricação, punições indevidas, etc.
No Brasil, ao revés, temos uma legislação branda quanto a erros, essencialmente quando se fala de erros judiciais ou ministeriais, com penas vantajosas inclusive. No âmbito administrativo, seja para juízes, seja para promotores, temos a famigerada “pena” de aposentadoria compulsória Com vencimentos proporcionais, que às vezes chegam a superar o teto. Na esfera civil há a remota e raramente possível hipótese de responsabilidade regressiva do servidor. Na esfera penal temos a ausência de legislação efetiva para coibir abusos, sendo, na lei existente, difícil ou até impossível o enquadramento de condutas.
E qual o problema destas lacunas?
Bom, o questionamento nos remete ao título deste texto, tradução própria da frase célebre de Juvenal ainda no século II, originalmente “Sed quis custodiet et ipsos custodes?“, feita como questionamento a Sócrates no livro A República, escrito pelo filósofo Platão. A reflexão diz respeito a instrumentos de controle geralmente invocados pelas pessoas quando diante de erros ou escândalos envolvendo os órgãos persecutórios: quem julga os julgadores, quem vigia os vigilantes, quem denuncia os denunciadores -, servindo a todo fim e à mesma questão: os limites do poder!
Na democracia em que vivemos existe uma ordem de precedência, em que o poder emana do conjunto normativo vigente, sendo a sua manifestação por ele regulada e por ele igualmente limitada, um poder limitado por um lado pelos deveres de ação e por outro pelos limites desta ação: dever-poder-garantia.
Devemos entender que, nesta senda, todos devem ser responsabilizados quando extrapolam os limites de exercício do poder, exatamente pelo fato de que poder sem limite corresponde ao arbítrio e, portanto, contrário ao regime democrático.
Limitar o poder é, portanto, essencial, mas como deve ser feita esta limitação?
O Projeto de Lei n 7.596 de 2017, que aguarda a sanção presidencial, visa alterar a consolidar o conjunto normativo hoje existente punindo o abuso de autoridade. No entanto, apesar de conter acertos, pesam mais os erros e exageros da norma, que traz tipos penais extremamente abertos que podem ser utilizados para prejudicar e até para atravancar a atuação de todos os sujeitos que atuam na persecução penal, a pretexto de estarem agindo em abuso de autoridade.
Há, no conjunto legislativo, expressões extremamente vagas que permitem interpretação absurdamente elástica e restrita ao campo hermenêutico. A problemática de tais expressões e os tipos extremamente abertos da lei é que, ao invés de suplantar uma lacuna jurídica no Brasil, a lei irá servir de agrilhoamento ao andamento da persecução penal, trazendo uma presunção de abuso por parte dos sujeitos envolvidos na persecução penal, desde a etapa investigativa, perpassando pelo dever da promoção da ação penal, no exercício da jurisdição e até na execução penal, trazendo uma grave crise ao já combalido sistema processual penal e execução penal brasileiro.
A Lei nº 7.596 de 2017, da forma como está, chega na contramão dos anseios da população, não apenas limitando o exercício do poder, qjue de fato deve ser limitado, mas dando uma carta branca a perseguições em um viés extremamente punitivista voltado aos sujeitos que atuam no Processo e na Execução Penal.
É certo que existem tipos penais na lei que são bem construídos, a exemplo às violações de direitos consagrados constitucionalmente, como o art. 21 que criminaliza a manutenção de presos de ambos os sexos na mesma cela, o que poderia evitar casos como o da jovem que foi presa e estuprada por 26 dias em uma cela com mais de 20 homens no interior do Pará. A pena para a juíza no caso: suspensão por dois anos com salário proporcional ao tempo de serviço (algo como férias remuneradas). A pena para os 3 delegados envolvidos: demissão!
Há, portanto, uma necessidade de que haja um debate mais plural em face dos exageros e dos tipos extremamente abertos trazidos pelo projeto, sendo inequívoco que é preciso avançar na direção de normas que limitem, de fato, o exercício do poder, permitindo que seja ele exercido nos estritos limites da Constituição e dos Tratados de Direitos Humanos os quais o Brasil é signatário, mas sem trazer um engessamento a uma área tão essencial como o Processo e a Execução Penal, sob pena de fortalecimento da impunidade no país.
Uma Lei como esta, essencial como limitadora do exercício de poder, não pode ser manuseada casuisticamente como ato de vingança ou como freio a atuação estatal de punição a crimes, sejam eles quais forem, mas sim como projeto de modernização e consolidação, cada vez maior, de nossa Constituição e essencialmente dos direitos e garantias fundamentais nela expressos, reduzindo-se os espaços de impunidade, pois ninguém, nem mesmo os vigias estão livre da vigilância constante dos limites dos direitos e garantias fundamentais.
ENIO WALCÁCER
É Delegado da Polícia Civil, mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos, especialista eml) Ciências Criminais e em Direito e Processo Administrativo. Graduado em Direito e em Comunicação Social com ênfase em Jornalismo. Todos os Cursos pela UFT.