A denominada ‘Carta do Rio Grande do Norte’ elaborada pela Associação Nacional dos Delegados da Polícia Judiciária (Adepol-RN) após o primeiro congresso jurídico da entidade gerou repúdio de uma série de federações e associações de policiais civis e federais. A principal crítica deve-se a suposta pretensão do documento de colocar os delegados como “representantes únicos” das Polícias Federal e Civil.
Divulgada no Facebook da Adepol do Rio Grande do Norte no domingo, 2, a carta fala da “pertinência” de um modelo que atribuia as funções de prevenção e investigação a “polícias distintas”, e alocando à chamada Polícia Judiciária – Civil e Federal – uma carreira jurídica com poder cautelar para tomada de decisões sobre direitos fundamentais aos delegados.
A nota gerou repúdio de uma série de entidades. Em conjunto, a Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) e a Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis (Cobrapol) emitiram nota para manifestar “indignação”.
“Os delegados invocam, ilegitimamente, sua condição de representantes únicos destas instituições, o que contraria a Constituição Federal e as normas legais que estabelecem que as Polícias Civil e Federal são os órgãos responsáveis pela segurança, ordem, garantia dos direitos, defesa da vida, da liberdade e do patrimônio, entre outros direitos fundamentais. O texto da Carta Magna não atribui essa missão a nenhum cargo isoladamente”, anotam Fenapef e Cobrapol.
A Federação Interestadual dos Policiais Civis das Regiões Centro-Oeste e Norte (Feipol-CON) também se manifestou. “A tentativa de assumir de forma plena e individual as atribuições da Polícia Civil, além de fragilizar a instituição, nem de longe condiz com o papel que na prática esses profissionais exercem, sendo na realidade quase inalcançáveis para boa parte da população que busca seus serviços nas unidades policiais em todo o Brasil. Repudiamos essa tentativa de resumir a Polícia Civil à figura do delegado”, disparou.
Até a Associação Nacional dos Escrivães de Polícia Federal (Anepf) do Rio Grande do Norte reagiu à carta. “O principal mote do documento é a defesa de exclusivismos que já se mostraram insustentáveis na atividade policial, […] como o exclusivismo funcional no que se refere ao termo autoridade policial. São ideias que vêm sendo defendidas pelas representações dos delegados de polícia em busca da manutenção de modelos que se mostram não só ultrapassados, mas anacrônicos e extremamente ineficientes, causando prejuízos incalculáveis à sociedade brasileira”, disparou.
Leia abaixo a íntegra da carta e de todas as manifestações de repúdio:
“CARTA DO RIO GRANDE DO NORTE.
Os Delegados de Polícia Civil e Federal, reunidos nos dias 29 de novembro a 2 de dezembro de 2018 em Touros/RN, por ocasião do o I Congresso Jurídico da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Judiciária;
Considerando as exitosas discussões promovidas por diversas autoridades e professores presentes no evento, e levando em conta as modernas concepções teóricas e práticas sobre o Sistema de Segurança Pública e de Justiça Criminal e o Papel das Polícias Judiciárias;
Deliberam pela busca imediata das seguintes medidas, que atendem não apenas o legítimo anseio dos Delegados de Polícia de todo o Brasil, mas principalmente a justa expectativa da população brasileira:
1. Reconhecer a pertinência do modelo de segurança pública do Brasil, que atribui as funções de prevenção e investigação a Polícias distintas, e aloca na Polícia Judiciária (órgão imparcial) uma carreira jurídica com poder cautelar para tomada de decisões sobre direitos fundamentais (Delegado de Polícia), permitindo o controle de legalidade imediato dos atos da Polícia Ostensiva e com isso estabelecendo mais garantias ao cidadão, conforme consignado no Plano Orientador Nacional de Planejamento Estratégico das Polícias Judiciárias;
2. Declarar a necessidade de aumentar o investimento na Polícia Investigativa, permitindo o incremento na eficiência da primeira etapa da persecução penal, o que não se dá através da mera mudança do modelo de segurança pública;
3. Constatar que a eficácia da investigação criminal se mede não pela taxa de indiciamento, acusação ou condenação, mas pela descoberta da verdade, tendo em conta que o inquérito policial tem como finalidade principal preservar os direitos fundamentais e servir como filtro contra acusações infundadas;
4. Afirmar a independência funcional do Delegado de Polícia, que como integrante de carreira jurídica e primeiro garantidor dos direitos fundamentais do cidadão, deve tomar decisões segundo seu livre convencimento motivado, abrangendo decisões acerca da prisão em flagrante, indiciamento, princípio da insignificância, justificantes e exculpantes, dentre outras análises técnico-jurídicas, não respondendo por ilícito pelo tão só fato de deliberar fundamentadamente;
5. Respeitar o princípio do delegado natural, direito fundamental do cidadão de ser investigado apenas pela autoridade naturalmente designada pelo ordenamento jurídico;
6. Garantir a inamovibilidade do Delegado de Polícia, tendo em vista que sua remoção somente pode ocorrer através de ato fundamentado de órgão colegiado superior por interesse público, que indique concretamente as circunstâncias fáticas justificadoras, não sendo suficientes ilações, meras referências a dispositivos legais, utilização de termos genéricos ou motivados por ingerência política;
7. Garantir a autonomia administrativa e financeira da Polícia Judiciária, como forma de superar seu sucateamento e em respeito ao fato de se tratar de órgão de Estado, e não de governo, e ser uma das instituições públicas mais fiscalizadas, notadamente pelo controle interno, externo, judicial e popular;
8. Apoiar a instauração pelo Delegado de Polícia de procedimentos para apuração de improbidade administrativa decorrente de práticas criminosas;
9. Incrementar a parceria entre Polícias Civis e Polícia Federal, com apoio a investigações conjuntas, porquanto possuem a mesma missão constitucional e o mesmo desiderato de garantir direitos fundamentais por meio da investigação criminal;
10. Estabelecer eleições por Delegados de Polícia para Delegado Geral mediante lista tríplice com caráter impositivo;
11. Avançar com a ampliação do poder cautelar do Delegado de Polícia, para abranger também a decretação de medidas protetivas de urgência, em defesa da mulher vítima de violência doméstica e familiar, bem como a ampliação da concessão de medidas cautelares diversas da prisão, em especial a fiança;
12. Aperfeiçoar a capacidade postulatória do Delegado de Polícia, para abranger, diante o indeferimento judicial de medidas cautelares, a solicitação de reexame da representação do Delegado e o recurso subsidiário face à inércia do Ministério Público;
13. Fomentar a atuação acadêmica e doutrinária dos professores Delegados de Polícia;
14. Obedecer a divisão de atribuições, cessando a investigação de crimes comuns por Polícia Ostensiva, notadamente pela Polícia Militar e Polícia Rodoviária Federal, que não podem lavrar termo circunstanciado de ocorrência;
15. Reconhecer a inconstitucionalidade e inconvencionalidade da ampliação do conceito de crime militar promovida pela Lei 13.491/17, e obedecer a separação de funções, extinguindo a investigação de crime doloso contra a vida praticado por miliciano contra civil pela Polícia Militar, crime comum que em nada foi afetado pela referida alteração legislativa;
16. Limitar a atuação da P2 da PM, que não pode fazer investigação de crime comum;
17. Impedir a lotação de policiais no GAECO do Ministério Público;
18. Respeitar os limites ao poder requisitório do Ministério Público, porquanto a instauração de investigação depende da indicação fundamentada de indícios mínimos de infração penal, e as diligências adicionais devem ser imprescindíveis e indicadas somente no final do inquérito, por meio de requisição formulada apenas pelo promotor natural;
19. Acatar os limites ao controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, pois incide somente sobre a atividade-fim da Polícia Judiciária e não sobre as atividades-meio, por meio de requisição formulada apenas pelo promotor natural;
20. Retirar todos os presos custodiados nas delegacias de polícia;
21. Reconhecer que o inquérito policial qualifica-se como indispensável filtro contra acusações infundadas, verdadeiro instrumento de preservação de direitos e mecanismo de produção de elementos informativos e probatórios;
22. Afirmar a isonomia do cargo de Delegado de Polícia, que deve gozar de todas as prerrogativas das demais carreiras jurídicas.
Touros/RN, 2 de dezembro de 2018″
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Confira as manifestações de repúdio:
“A FEIPOL-CON manifesta sua profunda indignação quanto ao conteúdo da CARTA DO RIO GRANDE DO NORTE, emitida pelo I Congresso Jurídico da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Judiciária, realizado recentemente em Touros (RN), que reuniu os Delegados de Polícia Civil e Federal.
Em primeiro lugar, equivocam-se ao investirem unicamente ao seu “cargo” as funções constitucionais estabelecidas no artigo 144, Inc. IV, onde diz que a Polícia Civil é um dos órgãos responsáveis pela segurança, ordem, garantia dos direitos, defesa da vida, da liberdade e do patrimônio, entre outros direitos fundamentais, não citando o texto da Carta Magna, em nenhum momento, quaisquer cargos ou funções de forma exclusiva.
A tentativa de assumir de forma plena e individual as atribuições da Polícia Civil, além de fragilizar a Instituição, nem de longe condiz com o papel que na prática esses profissionais exercem, sendo na realidade quase inalcançáveis para boa parte da população que busca seus serviços nas unidades policiais em todo o Brasil.
Repudiamos essa tentativa de resumir a Polícia Civil à figura do Delegado, pois isso representa um desrespeito aos demais integrantes da instituição, sobre os quais recaem, invariavelmente, as tarefas vitais de sustentação da atividade policial, acarretando, muitas vezes, acúmulo e desvio de funções, tudo em nome da segurança pública do cidadão e da sociedade.
A CARTA dos senhores Delegados é a expressão do individualismo e do egoísmo que têm prevalecido em suas ações, o que pode acarretar, no limite, o fim da instituição. Esse fato, somado à falta de diálogo e de união, leva a uma visão míope de uma Polícia Civil que deve ser UNA E INDIVISÍVEL em todos os sentidos.
A Polícia Civil pertence a todos os segmentos profissionais que nela atuam e não apenas a uma função por mais importante que seja. Ou caminhamos nessa direção, ou estaremos fadados a um retrocesso brutal, razão pela qual a FEIPOL-CON rejeita e repugna toda e qualquer manifestação que desvalorize nossa categoria e, por consequência, avilte os serviços essenciais que devemos continuar prestando à sociedade.
Brasília, 3 de dezembro de 2018
MARCILENE LUCENA
Presidente da FEIPOL-CON“
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“Nota ANEPF
sobre a tal “Carta do Rio Grande do Norte”
A Associação Nacional dos Escrivães de Polícia Federal – ANEPF – após ter acesso ao conteúdo de documento intitulado “Carta do Rio Grande do Norte”, diante do caos que vive a segurança pública do país e a imprescindível modernização do sistema, sente-se na obrigação de se posicionar publicamente.
Trata-se de documento produzido em “congresso jurídico”, realizado no estado do Rio Grande do Norte, que contou com a presença de diversos detentores do cargo de Delegado de Polícia.
O documento produzido não causa estranhamento a esta associação, tendo em vista o conhecimento de outros congêneres produzidos que seguem a mesma lógica: externam interesses classistas às custas do interesse público.
Exemplos são vários e vão desde reserva de vagas de garagem em repartições públicas ao uso de pronome de tratamento e outras prerrogativas exclusivas, incluindo o que a sociedade já entendeu e está atualmente rechaçando: os tais privilégios das autoridades.
Mas o principal mote do documento é a defesa de exclusivismos que já se mostraram insustentáveis na atividade policial, exclusivismo tanto institucional, através do conceito construído/manipulado de polícia judiciária, como o exclusivismo funcional no que se refere ao termo autoridade policial.
São ideias que vêm sendo defendidas pelas representações dos delegados de polícia em busca da manutenção de modelos que se mostram não só ultrapassados, mas anacrônicos e extremamente ineficientes, causando prejuízos incalculáveis à sociedade brasileira.
Para se ter uma ideia, o modelo utilizado na investigação policial brasileira, o “elefante branco” chamado inquérito policial, só é utilizado em países africanos, ex-colônias portuguesas, que, assim como o Brasil, pararam no tempo e não acompanharam a onda de modernização das instituições policiais que aconteceu no resto do mundo.
O inquérito policial atual gera mais de 90% de impunidade e os citados exclusivismos expostos acima, por exemplo, impedem policiais militares, policiais rodoviários federais e, pasmem, até os próprios demais cargos policiais das ditas polícias judiciárias de investigar.
Por causa dos exclusivismos, um policial civil ou federal diverso do cargo de delegado, assim como os demais policiais das outras instituições não podem nem instaurar ou lavrar termo circunstanciado de ocorrência.
É a defesa do indefensável, com o interesse exclusivo de perpetuação de reserva de poder e “status” dentro da estrutura de segurança pública, que precisa tanto de mudanças e que conta com desafios hercúleos.
Isso, num momento em que a sociedade brasileira desperta e exige dos representantes políticos solução para os graves problemas que o país enfrenta.
Esta associação, mais uma vez, aproveita o ensejo para ressaltar que é favorável a uma ampla reforma no sistema de segurança pública que contemple, dentre outras questões, as seguintes:
1) CICLO COMPLETO DE POLÍCIA – todas as instituições policiais atuam tanto na prevenção (policiamento ostensivo/preventivo), como na investigação policial, acabando com o gargalo institucional. Atualmente, a instituição com maior contingente (Polícia Militar) não pode investigar;
2) CARREIRA ÚNICA – todas as instituições policiais dotadas de carreiras com única porta de entrada, ou seja, com o ingresso pela base e ascensão a postos de comando e gestão por promoção, levando-se em conta critérios de competência, experiência e mérito;
3) NOVO MODELO DE INVESTIGAÇÃO – modernização do modelo de investigação policial, com o fim de prerrogativas exclusivas a apenas um cargo, ampliando o quadro de policiais investigadores que, através de procedimento sem burocracia, técnico, célere e eficiente possa dar conta da grande demanda e combater a impunidade.
Para finalizar, deixamos o seguinte pensamento para reflexão.
Imaginem uma senhora de 80 anos, que teve a bolsa, com todo seu dinheiro do mês, furtada. As medidas da tal carta de Touros/RN ajudariam a vítima a recuperar seus pertences ou, ao menos, ver preso quem a furtou?”