Há um ditado muito comum nos treinamentos policiais, naqueles em que o profissional é levado ao ápice da sua capacidade física e psicológica, o qual diz que “nada é tão ruim que não possa piorar”. Pois bem, a Polícia Civil do Tocantins está vivenciando algo muito parecido, pois, após a redução do número de regionais, o fim do concurso de remoção para delegados e da inamovibilidade, o decreto da mordaça, o estatuto da super corregedoria, o regimento, que há de vir em breve, no qual todos fomos surpreendidos pelo despacho do Secretário de Segurança Pública, em processo administrativo instaurado a partir de pedido de reconsideração, formulado pelo delegado de Polícia e atual presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia, Mozart Felix, no qual ele sugere a exoneração do citado policial.
[bs-quote quote=”A administração pode anular o ato que exonerou o delegado Mozart, porque ele se deu com base em um pedido que ocorreu pelo fato de que o delegado estava sofrendo coação moral extrema, em outras palavras, foi ameaçado de morte” style=”default” align=”right” author_name=”WANDERSON CHAVES DE QUEIROZ” author_job=”É delegado de Polícia Civil” author_avatar=”https://clebertoledo.com.br/wp-content/uploads/2019/03/WandersonChavesdeQueiroz60.jpeg”][/bs-quote]
Antes de aprofundar no assunto, é importante deixar claro que as mudanças que visam melhorias na área de segurança pública são, não apenas importantes, são urgentes e necessárias, na medida em que a Polícia Civil deve proporcionar à sociedade a segurança pública que ela merece, como resposta a já imensa carga tributária suportada pelo cidadão. Contudo, as mudanças, para que sejam efetivas e reflitam a realidade, devem ser debatidas com aqueles que são responsáveis por executá-las, no entanto a reestruturação da Polícia Civil que deve ocorrer por decreto, estabelecendo seu regimento, não foi devidamente discutida com os responsáveis por torna-la realidade.
Isso me fez lembrar a história de que na copa de 58, o técnico Feola bolou um plano infalível de ataque contra a equipe da União Soviética, e Garrincha, quebrando a empolgação do técnico, questionou “tá legal, seu Feola, mas o senhor combinou com os russos?”, ou seja, o plano pode até ser perfeito, mas se não combinar com o outro lado, com os responsáveis por colocá-lo em prática, ele está fadado ao insucesso.
Voltando ao ponto, o parecer do Secretário sugeriu a exoneração do delegado de Polícia, o requerente Mozart Felix, alegando, com essas palavras, que “o sentimento pessoal do requerente, por ser somente a ele imputável, não pode caracterizar fato jurídico relevante como a coação moral irresistível”. Refletindo sobre esse trecho, pensei em como é fácil decidir algo sem nunca ter estado no sertão onde os fatos ocorreram, pois acredito que, naquela época e localidade, o número de jagunços e de armas em poder deles era superior ao de policiais, e de armamento da Polícia Civil no local.
No campo do Direito, o retorno do delegado está garantido, mesmo após pedido de exoneração, na súmula 473 do STF, ao dispor que “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos”. Assim, ao meu ver, o texto é claro e, aplicado ao caso em debate, demonstra que a administração pode anular o ato que exonerou o delegado Mozart, porque ele se deu com base em um pedido que ocorreu pelo fato de que o delegado estava sofrendo coação moral extrema, em outras palavras, foi ameaçado de morte. Logo, a origem do ato, no caso o “pedido” é eivado de vício, porque não foi expressado de espontânea vontade do requerente delegado, mas motivado por uma questão de sobrevivência.
Entretanto, o despacho do Sr. Secretário toma interpretação diversa ao dizer que “não parece se aplicar ao caso a súmula 473, como invocado pelo requerente, pois o vício, como alegado, residiria na sua própria vontade, e não na vontade da administração”. Ora, é como se a administração tratasse o profissional, o ser humano que está atrás do distintivo, como uma máquina que se substitui e se lança fora. É não considerar os perigos que a profissão traz consigo, e não perceber que o indivíduo, por ser de carne e osso, chega ao seu limite e atribui a ele a culpa de ser coagido e por não ter suportado o encargo do qual a própria administração deveria ter evitado que ocorresse, antes de chegar ao ponto de o delegado ter que pedir exoneração.
Vale destacar que o processo administrativo em questão, no qual a sugestão de exoneração foi encaminhada, foi alvo de investigação por parte da corregedoria da Polícia, através de comissão composta por três delegados, os quais concluíram que: “esta comissão entende que não foi simplesmente um pedido de exoneração livre de quaisquer motivos, haja vista que independentemente de não ter descrito na época as circunstâncias apresentadas nos autos envolvendo a pessoa do então Desembargador do Tribunal de Justiça tiveram o condão de gerar na pessoa do interessado tamanha sensação de medo e insegurança ao ponto de buscar licenças médicas, remoção da localidade de trabalho e por fim a exoneração de seu cargo de Delegado de Polícia Civil”.
Importa esclarecer que o artigo 54 da Lei 9.784/99 reza que o prazo para a administração anular atos administrativos que decorram efeitos favoráveis para o funcionário é de 05 anos, contados da data em que foram praticados. O ato administrativo que reconsiderou o pedido de exoneração data de 2011 e a publicação ocorreu em janeiro de 2012, ou seja, qualquer questionamento em seu desfavor decaiu no ano de 2017.
Daí eu me pergunto, o profissional quase morreu por enfrentar uma oligarquia, colocou sua vida e de sua família em risco, foi ao limite e depois que seu algoz foi afastado legitimamente ele volta para a polícia. Passaram-se oito anos do ato que o retornou e justamente quando ele começa a defender, no exercício de seu encargo como líder sindical, o grupo de delegados que está combatendo a corrupção, tudo o que foi demonstrado na investigação da corregedoria, a qual comprovou que o ato de exoneração foi motivado pela coação que o profissional sofreu, deixa de ter importância e utiliza-se o poder da caneta para tentar expurgar “a pedra no sapato” da administração. Por qual motivo? Defender os colegas na linha de frente de investigações envolvendo atos de corrupção na administração pública.
Como esperança de dias melhores, me apego a outro ditado popular: “não há mal que sempre dure”. Por isso que acredito que, muito em breve, decisões administrativas, ainda que no campo da sugestão, não terão mais espaço contra aqueles que trabalham arduamente contra os crimes envolvendo corrupção.
WANDERSON CHAVES DE QUEIROZ
É delegado de Polícia Civil no estado do Tocantins
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