Excelentíssimos deputados tocantinenses,
O projeto de lei do marco temporal para a demarcação de terras indígenas (PL 490/2007), que Vossas Excelências aprovaram na Câmara, é uma tese jurídica que, na verdade, configura-se um sofisma para legitimar o histórico processo de arrancar de nossos povos originários o que lhes é de direito. Na prática, absurdamente, essa matéria inverte os fatos, como se os indígenas tivessem chegado ao Brasil depois dos portugueses e, por isso, nós, “os brancos”, estivéssemos na condição de ofertar, pela “benevolência”, um pedacinho de terra a eles como “doação caridosa”.
É isso que o país está dizendo ao aceitar esse acinte de que os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras em que já estavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Não há o menor cabimento nisso. Tudo para justificar a ganância de grupos, que não pensam na sobrevivência deste planeta, que é nossa casa, cuja única preocupação é mercantilizar tudo em que põem as mãos, a despeito das consequências funestas que podem promover. Do Tocantins, apenas o deputado Ricardo Ayres entendeu o significado dessa trama nefasta e votou contra.
Como resumiu nossa secretária estadual dos Povos Originários e Tradicionais, Narubia Werreria, à Coluna do CT, esse projeto “é uma anomalia inconstitucional, a maior violência que o legislativo está promovendo contra os povos originários desde a redemocratização”. E concluiu: “Só posso pensar que estes deputados odeiam os povos indígenas e toda a natureza que protegemos em nosso território. A ganância sobre nossas terras ainda impera nesta nação”.
Caros congressistas, desde que cheguei ao Tocantins, há 20 anos, sempre me chamou a atenção o respeito dos principais líderes políticos do Estado no tratamento com os indígenas, ainda que o reconhecimento não se dê na mesma proporção nas condições materiais que lhes oferecem. Hoje são apenas pouco mais de 13 mil pessoas no Tocantins, distribuídas em oito etnias (Karajá, Xambioá, Javaé, Xerente, Krahô, Krahô Kanela, Apinajé e Ãwa Canoeiro), em diferentes regiões tocantinenses.
Assim, a cultura indígena marca nossa história, influencia nosso povo e, consequentemente, também nossa política. Não há uma eleição em que candidatos a vereador, prefeito, deputado e senador não deem um pulo às aldeias para se mostrarem solidários, empáticos com suas causas e suas necessidades materiais – reforçando: ainda que após o processo eleitoral pouco se vê de ação prática em defesa gente guerreira, heróica, sobrevivente de um processo genocida histórico.
Em fevereiro fiz uma das entrevistas que mais me emocionaram nessas três décadas de jornalismo, com a professora Reijane Pinheiro da Silva, doutora em antropologia social e docente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e do curso de Nutrição da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Ela me relatou que o grande antropólogo, historiador e sociólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) conta em sua obra que, na região de Tocantínia, as águas dos rios chegavam a ser contaminadas com veneno para que os indígenas tomassem e morressem, e suas terras fossem apropriadas pelos brancos de forma ilegítima e criminosa.
Mas não só isso. Houve casos de doenças deliberadamente disseminadas, como pela contaminação proposital por varíola. Fazendeiros deixavam roupas contaminadas nas cercas, os indígenas as pegavam e levavam para as aldeias, que eram exterminadas em questão de dias.
Esse processo de expulsão dos indígenas de suas terras, pela doença, pela força das armas, agora tentam colocar em favor desse projeto genocida do marco temporal. Vejam, Excelências, um dos principais argumentos que sustentam essa tese jurídica esdrúxula é que, como um povo não estava na sua terra em 5 de outubro, logo, não tem direito a ela. Os Xokleng, por sua vez, argumentaram na ação que tramita no STF que a terra estava desocupada na ocasião porque eles, justamente, haviam sido expulsos de lá. Portanto, é um argumento cruel, pífio, insustentável diante das luzes da história. Quem embarca num argumento desses para votar favorável o faz em plena consciência de sua invalidade, portanto, age de má-fé.
A mesma professora Reijane Pinheiro da Silva que entrevistei e duas colegas especialistas – Ana Rojas Acosta e Rute Maria G. de Andrade – produziram uma nota técnica pela Rede Mulheres Cientistas e alertam para o risco que esse projeto maligno representa à vida dos indígenas. Elas destacam que os direitos originários desses povos “estão fundamentados no fato de que, para os povos indígenas, a terra é condição para a sua sobrevivência física e cultural e, portanto, o direito primordial a outros direitos”.
As especialistas reforçam o que disseram os Xokleng ao STF: “O marco temporal desconsidera o processo histórico brasileiro, marcado pela invasão dos territórios indígenas, pela violência e pelo genocídio, densamente documentados no Brasil. Esse processo tem obrigado os povos indígenas a se deslocar constantemente, o que ainda acontece, a fim de sobreviverem às investidas de fazendeiros, grileiros, madeireiros e garimpeiros sobre suas terras”.
Por fim, elas resumem os efeitos malignos do marco temporal:
“Consideramos que a aprovação do PL representa evidente retrocesso histórico nos direitos dos povos originários pois:
1) Atende, unicamente, aos interesses dos que advogam pela mercantilização das terras indígenas e seus recursos;
2) Afeta sua organização social e sua relação com a terra;
3) Anuncia um horizonte genocida e etnocida, dada a indissociabilidade entre eles e as terras que ocupam;
4) Compromete não só a vida deles, mas também a de todos nós, visto que eles são essenciais à preservação dos ambientes naturais, já que nas terras indígenas estão as maiores reservas de biodiversidade do Brasil, nascentes de grandes rios, processos biológicos endêmicos e habitats de animais em risco de extinção;
5) Contraria os compromissos assumidos pelo país ao assinar o Acordo de Paris e o Protocolo de Kyoto, porque favorecerá a devastação e o esgotamento das terras que ocupam.
Para mim, Senhores e Senhoras, a professora Reijane Pinheiro da Silva explicou que as etnias do Tocantins correm muitos riscos, pois o PL do marco temporal prevê a possibilidade de rever demarcações, além de que existem algumas terras aguardando homologação, como a dos Ãwa Canoeiro.
Por fim, o pano de fundo colocado nesse debate para Vossas Excelências, representantes do povo tocantinense, é se nossos indígenas são úteis aos Senhores apenas na hora de votar. E é que o parece ter ficado claro com a votação da noite desta terça-feira sombria. Interessante a intensidade das ações de nossos políticos para se mostrarem publicamente como representantes dos ricos, sejam produtores rurais ou empresários. É Frente Parlamentar do Agronegócio, Frente Parlamentar da Indústria, Frente Parlamentar do Comércio. Nada contra. É muito importante defender o setor produtivo.
Mas por que nunca vejo ninguém se colocar como representante dos menos favorecidos, indígenas e trabalhadores do campo, por exemplo, justamente os que mais precisam de alguém que os defenda? Claro, se colocam como tal nos discursos de frases destituídas de comprovação na prática. Por quê? Pobres só servem para votar, mas o mandato de Vossas Excelências sempre devem ficar à disposição exclusiva do andar de cima, num dos Estados mais desiguais e injustos do País?
Espero, de coração, que os povos indígenas tocantinenses nunca mais deem abertura para que deputado que votou a favor do marco temporal adentre suas aldeias em busca de votos. Quem votou a favor desse projeto nefasto é sócio de um genocídio, inimigo dos povos originários e de todo brasileiro e brasileira com o mínimo de sensibilidade e empatia.
O projeto vai para o Senado, mas não tenho muita esperança de alteração do resultado da Câmara. Novamente nos restará o STF, uma vez que a Constituição reconhece que o direito dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional é um direito originário, ou seja, anterior à própria formação do Estado. É como já concluiu o ministro Edson Fachin, o relator do caso, o primeiro a votar, e, claro, contrário ao marco temporal.
Ao me despedir, só meu lamento à falta de sensibilidade de nossos parlamentares, numa trágica noite para o Brasil.
Cleber Toledo