O jornal em que eu trabalhava no interior de São Paulo processou o prefeito da cidade na segunda metade dos anos 1990. No dia e hora impostos pelo Fórum, lá se foi o diretor do impresso, britanicamente, para a audiência. Do lado de fora da sala, ele e o requerido, inimigos figadais, nem se olharam até que o assessor do juiz mandou todo mundo entrar. O magistrado, ao ver o prefeito em seu ambiente de trabalho, amigos de inesquecíveis rega-bofes da high society, não se aguentou. Levantou-se eufórico de seu alto e sublime trono, desceu à planície dos normais e abraçou o companheiro de uísques e noitadas: “Prefeito, o senhor por aqui! Não acredito!”, agitava-se o árbitro da refrega, com tapas nas costas do político que ecoavam por todo o prédio.
Por óbvio, o jornal perdeu a ação. Claro, sem qualquer relação com a efusiva recepção ao alcaide, muito menos com as beberagens de ambas Excelências na fina flor da sociedade.
O presidente não quer Aras apenas como um reles procurador-geral de República. Vislumbra para ele voos mais altos
CLEBER TOLEDO, jornalista e editor da Coluna do CT
Lembrei-me dessa passagem de mais de 20 anos quando assistia na TV, nessa segunda-feira, 25, a profunda demonstração de amizade do presidente Jair Bolsonaro pelo procurador-geral da República, Augusto Aras. O chefão do MPF é um privilegiado com tamanha consideração. E não se trata de um episódio isolado.
Vejam só: Aras nem era captado pelo radar da eleição do colegiado para o cargo maior da instituição. Há quem diga que se a lista dos nomes preferidos dos procuradores não tivesse apenas três, mas dez, ele, ainda assim, não estaria nela. Mas a sintonia entre o presidente da República e o atual procurador-geral chegou ao ponto de seu nome vibrar epifanicamente e Bolsonaro o catapultar, do nada, sobre os demais para que ficasse com a vaga.
É algo de outras vidas. Só pode.
O presidente não quer Aras apenas como um reles procurador-geral de República. Vislumbra para ele voos mais altos. Quando o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro deixou o governo com a metralhadora no automático, eis que começaram a aparecer notas aqui e ali dando conta de que Bolsonaro poderia indicar seu considerado para ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), numa vaga que será aberta em novembro com a aposentadoria do decano Celso de Melo.
E este parece ser o caminho pelo que vimos nessa segunda-feira, quando a plena sintonia do presidente com o procurador-geral da República foi ao ápice. Em meio à mais profunda crise sanitária da humanidade, que deve gerar a maior recessão econômica desde o início do século 20, o chefe do Executivo deixou de lado essas preocupações comezinhas para assistir a videoconferência da posse de Carlos Alberto Vilhena na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão — diga-se: uma área muito cara ao presidente, sobre a qual ele tem um repertório de frases de exaltação ao longo da carreira.
Não satisfeito, após a solenidade, de tão emocionado e em mais uma gigantesca demonstração de apreço por Aras, Bolsonaro decidiu deixar o entediante Palácio do Planalto, naquele mesmo instante, e se dirigir até a Procuradoria-Geral para dar um abraço no amigo e no novo titular do Direito do Cidadão, esse campo tão em alta no gabinete presidencial. Mais: humildemente, pediu a autorização para ir cumprimentar aquele que chamou de “colegiado maravilhoso da PGR”. Seu considerado, sem constrangimentos, aquiesceu: será recebido com “a alegria de sempre”.
E lá se foi o chefe da Nação, suspeito de ter cometido seis crimes, para a visita surpresa àquele a quem cabe decidir se o processa ou não.
Não tenho a menor dúvida de que realmente Bolsonaro foi recebido com a “alegria de sempre”, como o prefeito do interior de São Paulo naquela marcante audiência dos longínquos anos 1990.
CT, Palmas, 26 de maio de 2020.